Um monte de excremento humano, numa viela por onde passo, me fez tomar vergonha na cara e alimentar esta página. No caminho para o trabalho deparei-me com fezes de gente. De gente. E isso me remeteu a um grande nome da literatura.
Li "Ensaio sobre a cegueira", do mestre José Saramago e assisti o filme que leva o título, baseado na obra e produzido pelo também mestre Fernando Meirelles. Um trecho chocante e que me escandalizou foi o do prédio da quarentena tomado pela imundície, pelas doenças, pela podridão. Sem ninguém para administrar e estando todos literalmente cegos, o caos virou a ordem do lugar.
Li "Ensaio sobre a cegueira", do mestre José Saramago e assisti o filme que leva o título, baseado na obra e produzido pelo também mestre Fernando Meirelles. Um trecho chocante e que me escandalizou foi o do prédio da quarentena tomado pela imundície, pelas doenças, pela podridão. Sem ninguém para administrar e estando todos literalmente cegos, o caos virou a ordem do lugar.
Nas obras, a população do mundo é contaminada pela cegueira branca. "Ordem", "educação" e "decência" são termos abolidos diante da necessidade de sobreviver. Pois bem. Indo trabalhar e andado por uma pequena via de acesso à rua de cima, deparei-me com um montinho de fezes, que não eram caninas nem equinas. Para os queridos irracionais não há problema parar num cantinho ou no meio da rua mesmo e fazer suas necessidades. O cachorrinho ou o cavalo querem defecar? Pois que façam, oras, não compartilham do difícil convívio da espécie humana.
O caso é que, olhando pra merda de gente, naquele lugar já pos si só sujo, me senti naquela cena do filme, naquele trecho do livro, em que uma pessoa que ainda enxergava deparou-se com a realidade atual: tudo sendo devorado pelo retrocesso humano.
Embora desagradável, vale ressaltar que não se tratava de uma situação de emergência. Todo mundo sabe como é um cocô emergencial - é líquido, ao menos. Mas aquele deixado ali não era. Algum cego ao estilo do livro teve o dom de parar na viela, baixar as calças e fazer ali mesmo um ato que, de tão primitivo e desagradável, dá vergonha e é feito às escondidas.
O primeiro pensamento que inchou minha cabeça foi "eu não acredito". Mas, enquanto subia a viela, raciocinei sobre a ficção e a realidade. O limite da decência e da condição humana foi colocado em xeque pra mim. De verdade, a analogia feita por José Saramago não é ficção... é mais real do que qualquer pedra que eu possa ver e tocar ou que a minha própria imagem no espelho.
Quando será que esse cidadão ficou cego para a sua própria condição? Quando terá parado de se enxergar? Em que momento deixou de ver que ainda existem, embora não se saiba por quanto tempo, alguns hábitos lógicos da vida de qualquer um?
Terá sido você, grande e saudoso Saramago, o atual Nostradamus?